Viver para contar: o nascimento de um gênio
- sarahvivian24
- 15 de fev.
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Atualizado: 15 de fev.

Viver para contar, autobiografia de Gabriel García Marquéz lançada em 2002, é o relato sobre a vida – como é lembrada – do grande autor colombiano.
Por ser em primeira pessoa, a narrativa assume um ponto de vista subjetivista, como é esperado: apesar de fornecer datas, fatos, nomes, é pouco convencional no modo de selecioná-los. Um biógrafo tradicional escolheria, provavelmente, a linha cronológica – nascimento, amadurecimento, reprodução e morte –, mas como é Gabo, o tempo é psicológico, cheio de dobras, de idas e vindas, de embaralhamento, sobreposição e mistura dos fatos. Ele recorta os episódios de sua vida com as nuances da boemia, da vida política – e caótica – colombiana, de seus amores carnais, de sua extensa família e o dever de ajudá-la e a sua avidez como leitor e sua errática, mas profícua, vida de escritor.
Segundo Gabo, todo autor escreve apenas um livro, mesmo que dividido em vários, e, em seu caso, foi o livro da solidão. Quando esperamos que ele escreva, obviamente, sobre o processo de escrita de Cem Anos de Solidão, ele pincela e constrói uma maneira deslocada de tratar sobre sua magnum opus: ele prefere falar sobre as tentativas embrionárias de contar essa história e sobre a matéria vital que forneceu corpo aos personagens que tanto nos intrigram – eles são amálgamas de pessoas que passaram em sua vida, de figuras do cotidiano, das lendas, dos mártires, da Colômbia.
Ademais, sua obra tem como solo a Colômbia e, por extensão, a América Latina. A instabilidade política, as guerras civis, a violência, a polaridade entre conservadores e progressistas e a crescente tensão, que acaba estourando em massacres recorrentes, marcam a obra do autor de maneira implícita, explícita, pessoal e profissionalmente. Seus livros têm como pano de fundo esse estado de coisas, o qual ele presenciou enquanto cidadão e artista.
Como escritor e jornalista – cujo gênero favorito era a reportagem –, ele consistia em um excelente observador e escrevia com sensibibilidade e acidez acerca do fator humano: seus personagens são vívidos e tangíveis, pois carregam a existência de muitos. Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, afirma que um poeta está envolto por imagens, e assim o era para Gabo. Entretanto, para este, a própria realidade fornece essas imagens, sejam elas verossímeis ou fantásticas. No fim, Gabo se considerava um narrador, uma vez que transmitia aquilo que a vida dava.
O fascínio que as suas obras exercem se deve, sobretudo, por isso: ele demonstra o encanto que há no mundo, no banal, no cotidiano conhecido, ao mesmo tempo que expõe o desencanto que o mundo moderno causa – Cem anos de solidão argumenta sobre isso.
Sua autobiografia nos revela os realismos mágicos que presenciou, mas nos conta, principalmente, sobre a sua vida se descobrindo e construindo como escritor; e de como a vida prática, muitas vezes, se choca com as demandas exigidas por uma vida artística. Esse livro é uma provocação bem humorada e cheia de enredos para seus leitores mais atentos, mas, acima de tudo, um diálogo profundo de um escritor com outros, que queiram percorrer o mesmo caminho. Viver para contar é o registro da autorrealização de um gênio.
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