Quarto de Despejo, um diário atual e atemporal sobre o Brasil
- sarahvivian24
- 15 de mar.
- 2 min de leitura
Atualizado: 17 de mar.

Se um livro permanece atual, temos um problema a solucionar. A atemporalidade nos comunica nossa essência enquanto humanidade, a atualidade a denuncia. E o livro de Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo: Diário de uma favelada (1960), é atemporal e atual: fala da fome, da angústia, da paixão pelos livros, do direito à infância e à felicidade, das frestas da tristeza, do Brasil dos anos 50 e do Brasil do século XXI.
Quando comecei a lê-lo, senti uma mulher ainda não embrutecida pela vida, que falava das crianças com o acolhimento e compreensão, dos quais os pedagogos falam sobre a sua necessidade, mas que são raríssimos no cotidiano; que cantava, escrevia e lia apesar dos gritos, brigas e pensamentos famélicos. O diário de 1955 – o livro é composto por trechos escolhidos entre os diários de 1955 a 1960 – ainda mostra essa mulher excetuada. Entretanto, os diários dos anos posteriores revelam as marcas que a pobreza extrema causa: as surras nos filhos, o surgimento do suicídio como possibilidade – ela chegou a pensar em sugerir isso aos seus três filhos –, a ausência da cantoria. E mesmo com todos os seus próprios problemas, usava-os como lente de aumento e espelho para falar das questões de homens e mulheres como ela, brasileiros pretos e pobres de ontem e de hoje.
O livro é um exemplar da história cíclica do Brasil: país sem projeto político, marcado pela fome, alcoolismo, dificuldade das relações interpessoais, maternidade solo em situação de pobreza, favelização e desapropriação para obras de urbanização – mas cidade para quem? Daí vem o nome da obra de Carolina Maria de Jesus:
Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos [sic], almofadas de sitim [sic]. E quando estou na favela tenho a impressão que sou objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (Carolina Maria de Jesus, 2014, p. 39, epub)
Quarto de Despejo nos mostra que a saúde psicológica é responsabilidade sociopolítica: a instabilidade econômica, a insegurança alimentar, a falta de moradia digna, são fatores determinantes para a saúde física e mental, como diz uma música dos Racionais, “miséria traz tristeza e vice-versa” (Racionais MCs, 2002). É um livro de quem vive (n)a favela, que não se reduz a um topos físico, mas configura em si uma experiência de cores, cheiros, texturas, pessoas complexas – lugar de potência estrangulada.
Esse livro é a história de uma mulher, que seguiu e escreveu apesar de tudo. Nos conta como nos matam pela boca – pelo discurso e de fome.
Referências
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014. Epub.
RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia, Cosa Nostra/Zambia, ZA-050-1, 2002.
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